Adotado pelo Ministério da Educação (MEC), em novembro de 2020, como importante ferramenta de alfabetização no país, o aplicativo finlandês GraphoGame — jogo educacional com ambiente virtual voltado à aprendizagem de habilidades fonológicas — é rechaçado por especialistas em educação, que chegam, até mesmo, a classificá-lo como "picaretagem". A estratégia foi destacada pelo presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), no primeiro debate do segundo turno, na noite de domingo, ao enfrentar o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, na TV Bandeirantes.
O atual presidente disse que a ferramenta permite a conclusão do processo de alfabetização em apenas seis meses, porém, sem entrar em detalhes. A versão do GraphoGame no Brasil foi adaptada e desenvolvida por especialistas do Instituto do Cérebro, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Em cada fase do jogo, várias letras aparecem na tela do dispositivo e o som de uma delas é pronunciado em áudio. Ainda de acordo com a dinâmica, a criança precisa acertar a letra correspondente àquele som e, a cada acerto, ocorre uma pontuação. Ao final de cada fase é apresentado o índice de aproveitamento e as etapas vão se tornando mais complexas.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Cara observa que os próprios produtores do aplicativo assumem que ele só auxilia no início do processo de alfabetização, embora.
"Esse aplicativo tem poder limitado de colaborar na alfabetização. De maneira alguma essa ferramenta substitui a interação entre professor e aluno. É uma picaretagem a forma como ele está sendo divulgado e como o Bolsonaro utilizou o assunto no debate", diz Cara, ponderando que o aplicativo em questão utiliza o método fônico, que é construção silábica. "Havendo uma palavra composta por consoante-vogal ou vogal-consoante, o aplicativo colabora, mas o método fônico tem problemas enormes em relação à irregularidade da língua portuguesa e como se ensina na alfabetização uma criança. Há muitos exemplos, como a palavra 'osso', que tem uma vogal, duas consoantes e que tem a mesma sonoridade de 'aço'. O aplicativo tem limitações", avalia.
O acesso a equipamentos como tablets ou telefones celulares para a maioria das crianças também é outro problema apontado pelos especialistas em educação. "Não é possível distribuir celulares para todos. No auge da pandemia, vimos essa dificuldade. Milhares de estudantes não tinham acesso à internet ou equipamento para aulas remotas", lembra Cara.
O especialista lembra que o aplicativo pode até apresentar resultados satisfatórios na Finlândia, onde os professores são bem remunerados, existe uma ótima política de carreira e uma excelente estrutura para garantir condições de trabalho. "O GraphoGame é uma vírgula dentro do processo finlandês como um todo, mas, no Brasil, a realidade é bem outra. Para a gente trazer o modelo finlandês, temos que fazê-lo por completo, ou seja, uma escola com formação continuada, professores dedicados, recebendo um excelente salário e com condições de trabalho nas escolas", disse.
Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceip), Cláudia Costin afirma não haver "bala de prata para a alfabetização". Alfabetizar uma criança em seis meses, usando essa ferramenta de origem finlandesa como forma essencial não funciona. Não que seja um aplicativo ruim, mas nada substitui um bom professor. Na Finlândia, os professores utilizam livros didáticos, explicam, apoiam as crianças", afirma, lembrando que, no Brasil, até mesmo o Instituto do Cérebro, do Rio Grande do Sul afirma que a ferramenta, sozinha, não resolve nada, que trata-se apenas de um instrumento de apoio.
A pedagoga Paula Lorenzon, da Clínica Psicopedagógica Trevo, em Brasília, engrossa o coro dos que condenam o uso do GraphoGame visando um processo acelerado de alfabetização. Ela lembra que cada criança tem um ritmo, uma história, e que determinar tempo de seis meses para alfabetização por meio de um aplicativo é, simplesmente, um exagero. "Um aplicativo, por melhor que seja, não substitui a sala de aula, muito menos o professor, que é um auxiliar imprescindível no processo de alfabetização", afirma.