Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, e consagrado “bruxo do Cosme Velho”, é homenageado duplamente neste final de ano, com uma exposição sobre sua vida e sua produção e o relançamento de sua obra, iniciativas que contam com a participação de pesquisadores da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP. Trata-se da Ocupação Machado de Assis, sediada no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, e da Coleção Todos os Livros de Machado de Assis, da Editora Todavia. Em comum, ambas procuram somar esforços no movimento que enfatiza a negritude do homenageado e a importância das questões raciais em seu trabalho.
Feita pela equipe do Itaú Cultural, a curadoria da ocupação contou com três consultores externos, dois deles ligados à USP. Um deles é Hélio de Seixas Guimarães, vice-diretor da BBM e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A outra é Luciana Antonini Schoeps, pós-doutora pela USP. O terceiro consultor é Henrique Marques Samyn, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
De acordo com Guimarães, parte da crítica, especialmente na última década, vem revelando aspectos até então pouco conhecidos ou negligenciados nos textos do escritor, relacionados às questões de cor e raça. “Trabalhos de autores como Eduardo de Assis Duarte, Reginald Daniel, Paulo Dutra e Ana Flávia Magalhães Pinto, entre outros, trazem novas perspectivas de leitura para a obra e a trajetória de Machado de Assis.”
Duas obras pertencentes ao acervo da BBM foram emprestadas para a Ocupação Machado de Assis. Uma delas é a dramaturgia Desencantos: Fantasia Dramática, primeiro livro de autoria de Machado publicado, o que se deu em 1861 pela Tipografia de Paula Brito. O autor esperava que a peça fosse encenada no Ateneu Dramático em 1862, mas sua estreia jamais aconteceu. O exemplar emprestado pela biblioteca é um dos três que estão sob sua guarda e disponíveis em arquivos digitais para consulta.
A outra obra é o primeiro livro de poemas do autor, Crisálidas, publicado em 1864 pela livraria de B. L. Garnier. A edição reúne textos inéditos e produção veiculada na imprensa desde 1854. Já então respeitado como cronista e dramaturgo, Machado estreava em versos, em um volume dedicado aos seus pais, Francisco José de Assis, afrodescendente, e Maria Leopoldina Machado de Assis, açoriana. A BBM possui ainda um outro exemplar da obra em seu acervo, ambos digitalizados e disponíveis para o público.
Além dos empréstimos, Guimarães contribuiu com a gravação de depoimentos no qual comenta a presença do escritor em sua trajetória tanto como leitor quanto como pesquisador. Luciana e Ieda Lebensztayn, coautoras, ao lado de Guimarães, do livro Primeiras Edições BBM: Machado de Assis, também colaboraram com relatos para a exposição.
A vida e obra de Machado de Assis podem ser conhecidas pelo público na ocupação do Instituto Itaú Cultural. Manuscritos, primeiras edições, fotos, correspondência e livros de sua biblioteca pessoal – que inclui autores como José de Alencar, Stendhal, Blaise Pascal e Arthur Schopenhauer e está hoje sob guarda da Academia Brasileira de Letras (ABL) – ajudam a traçar o perfil do romancista, dramaturgo, poeta e cronista fundador e primeiro presidente da própria ABL. Em uma área do espaço expositivo, objetos e réplicas reproduzem seu canto de escrita, com penas, tinteiro, mata-borrão, sua caderneta de exercícios de grego e outros itens.
A mostra conta ainda com edições traduzidas de seus livros, demonstrando a difusão internacional de Machado, e uma publicação com reinvenções e análises de sua obra. Há, por fim, uma série de leituras dramáticas de textos selecionados, feitas pelas atrizes Aysha Nascimento, Carlota Joaquina e Cleide Queirós e pela cantora Juçara Marçal. Além do material emprestado pela BBM, a ocupação reúne também itens provenientes da ABL, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do próprio Itaú Cultural.
“A presença dos exemplares da Biblioteca Mindlin de Desencantos e Crisálidas, ao lado dos materiais da Biblioteca Nacional e da ABL, põe a BBM entre as grandes machadianas do País”, avalia Guimarães. “Isso tem a ver com o trabalho que vem sendo realizado na BBM desde 2015 para a qualificação e divulgação da excepcional coleção de primeiras edições de Machado de Assis presentes no acervo, o que já resultou numa exposição presencial, numa exposição virtual que pode ser visitada em machadodeassis.bbm.usp.br e num livro-catálogo com as primeiras edições de Machado de Assis pertencentes ao acervo da BBM.”
Mais de 400 itens relacionados diretamente a Machado de Assis fazem parte do acervo da BBM. Entre eles, as primeiras edições de seus livros, publicados entre 1861 e 1908. São 25 títulos e 47 exemplares, 37 integralmente digitalizados e disponíveis para consulta do público no site da biblioteca (neste link).
Machado de Assis, com tudo o que foi dito e escrito sobre ele nos mais de 150 anos em que seus textos são lidos e comentados, exerce muito fascínio, mas também pode intimidar o jovem pesquisador, ou melhor, qualquer pesquisador”, reflete o professor. “Trata-se da fortuna crítica mais longeva, numerosa e complexa da literatura brasileira. Por isso é comum se pensar que não há nada mais a ser dito sobre Machado. Entretanto, as pesquisas que vêm sendo realizadas nas últimas décadas mostram o contrário, que ainda há muito a se pesquisar e a se conhecer sobre ele. Essa possibilidade virtualmente infinita de gerar novas leituras e interpretações é a marca do grande escritor, que vai sendo relido e ressignificado pelas sucessivas gerações de leitores e críticos.”
Guimarães também é o idealizador da Coleção Todos os livros de Machado de Assis, publicada pela Todavia em parceria com o Instituto Itaú Cultural. Trata-se de um box com tiragem limitada, trazendo os 25 livros publicados por Machado de Assis ao longo da vida, começando pela estreia, em 1861, com a peça Desencantos, e chegando ao último romance, Memorial de Aires, em 1908.
Todos os gêneros que o autor exercitou ao longo da vida aparecem na coleção: poesia, teatro, crítica, crônica, conto e romance. Os volumes são acompanhados de apresentações inéditas e um projeto gráfico que recupera as tipografias originais das publicações. Dentre os livros, há também um extra, intitulado Terras, que apresenta seu trabalho como servidor público, totalizando 26 volumes. Machado conciliou as letras a empregos nos Ministérios da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas.
A particularidade dessa coleção é que ela oferece ao leitor tudo o que Machado de Assis recolheu em livro, incluindo poesia, teatro, conto, romance, crônicas e textos de circunstância: prefácios, textos críticos e homenagens”, conta Guimarães. “Entre sua vasta produção, em grande parte publicada primeiramente em jornais e revistas sob dezenas de pseudônimos e assinaturas, Machado escolheu cuidadosamente o que queria que ganhasse o formato mais prestigioso e perene do livro.”Segundo o professor, a organização cronológica da coleção permite ao leitor observar o escritor Machado de Assis definindo seus temas, delineando seus personagens e construindo as situações que se tornariam recorrentes em seus escritos. Além disso, possibilita observar como os diversos gêneros praticados pelo autor se entrelaçam, já que, mesmo após a estreia no conto e no romance, Machado continuou a escrever e publicar poesia e teatro.
Em vez do Machado seccionado em fases, gêneros e escolas literárias, dividido em categorias muitas vezes colocadas em oposição – primeira versus segunda fase, romântico versus realista, romancista e contista versus poeta e comediógrafo, por exemplo –, acredito que a coleção oferece um Machado mais orgânico, mais inteiro”, explica Guimarães. “Talvez também mais irregular e mais contraditório, mas tudo que está ali foi feito pelo mesmo escritor que escolheu assinar todos os seus livros, publicados entre 1861 e 1908, com uma única assinatura: Machado de Assis.”Na coleção, o tema da negritude aparece sobretudo nas anotações que perpassam os volumes feitas pelo professor Paulo Dutra, da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Segundo Guimarães, quase todos os livros trazem uma nota de rodapé produzida por Dutra, que chama a atenção do leitor para os modos como essas questões aparecem ou ficam sugeridas no texto. “É apenas um toque, que remete o leitor para os debates atuais, mas sem a pretensão de orientar a leitura”, explica o organizador.
Conforme revela o professor, os parâmetros fundamentais do trabalho foram a escolha da melhor edição publicada em vida do autor como edição-base, usando para tirar eventuais dúvidas a edição crítica da Comissão Machado de Assis – grupo formado em 1958 pelo governo federal com o fim de preservar a obra do escritor -, assim como as melhores edições póstumas. “Há notas de fim, quando se adotam soluções divergentes da edição-base e da edição crítica. E há notas de rodapé para palavras, referências ou citações não facilmente encontráveis nos bons dicionários da língua ou por meio de ferramentas eletrônicas de busca.
Outra preocupação – mais particular, mas não menos importante – que guiou a tarefa de Guimarães e da equipe editorial foi o esforço para manter a dicção original da escrita machadiana. A coleção procurou manter a pontuação das edições supervisionadas pelo próprio Machado de Assis, mesmo quando ela não se conforma às regras atuais da língua. “Nos seus textos, a pontuação nem sempre segue os princípios lógico-sintáticos a que estamos mais acostumados hoje. Muitas vezes a pontuação é retórica, sugerindo hesitação, ênfase, ambiguidade, ironia. As combinações que Machado faz de travessões, vírgulas, pontos e vírgulas e dois-pontos são muito peculiares, criam uma espécie de pauta musical e sugerem um ritmo de leitura”, explica o organizador.
Cada volume da coleção conta com uma apresentação baseada no roteiro que a Comissão Machado de Assis estabeleceu para a edição crítica, conta Guimarães, um projeto que teve início na década de 1950 mas não chegou a ser finalizado. “Neste caso, são mesmo apresentações que procuram oferecer informações precisas e úteis sobre cada livro, situando-o no conjunto da obra machadiana, na trajetória do escritor e no contexto literário e social em que foi escrito e produzido, além de indicar como aquele livro foi recebido pelos seus primeiros leitores.”
A caixa é resultado de quatro anos de pesquisa e mais de 20 profissionais envolvidos: leitores-críticos, preparadores, consultores, revisores, editores e designers. Como base, foram utilizadas as edições originais das obras, revistas pelo próprio autor. Apesar de a caixa ter tiragem limitada, em 2024 os livros começarão a ser publicados individualmente, acompanhando a ordem cronológica das obras.